Não lembro bem quando foi que eu ouvi falar de Guernica pela primeira vez. Talvez, na adolescência. Ou nas aulas de História da Arte, no primeiro semestre da universidade com a professora Ivana Paulatti.
A mente prega peças, mas me recordo que era novo e não sabia nada sobre arte. Não que hoje eu entenda alguma coisa, mas o passar dos anos me trouxe um interesse maior em conhecer clássicos e entender sua importância na História.
Lembro que quando aprendi sobre o quê a obra retratava, fiquei hipnotizado pelo fato de contar a história do horror de uma guerra de forma nada convencional.
Por anos ficou na cabeça a ideia de ver aquele tesouro histórico de perto. Recentemente, quando passamos uma semana em Madrid (ago/19), esse dia chegou.
Talvez o momento tenha sido o mais apropriado possível para entender o significado de um quadro que, quando foi apresentado ao público na Exposição de Paris de 1937, não foi compreendido.
“O que Picasso quer dizer com esses delírios cubistas?”
Citação imaginária para arriscar uma frase de alguém à época.
Continua comigo que mais à frente vou trazer o impecável argumento do autor para responder os críticos.
O bombardeio de Guernica: um ataque atroz orquestrado
Guernica é o retrato da Guerra Civil Espanhola e do absurdo nazi-fascista.
Escancara a dor, o medo, a covardia, a angústia, o terror.
Em 26 de abril de 1937, tropas da Alemanha de Hitler, aliadas do General Francisco Franco, ditador que comandou o golpe que deu início aos conflitos espanhóis em 1936, bombardearam a pequena cidade de Guernica, no País Basco, norte da Espanha.
Não haviam alvos militares no pueblo, mas ele era conhecido como um centro de resistência republicana, formada por socialistas, anarquistas, comunistas e agregados, que, ainda que tivessem divergências políticas, eram republicanos. E se uniram em oposição à ditadura golpista de Franco.
O ataque teria sido um misto de teste do exército nazista em um período em que a Segunda Guerra Mundial começava a se desenhar com uma estratégia de Franco para suprimir a resistência republicana.
O bombardeio ocorreu em dia de mercado ao ar livre no centro de Guernica. Foi um ato bárbaro contra civis que resultou na morte de centenas de pessoas (os números precisos são incertos).
Curiosidade!
De imediato, os fascistas espanhóis inventaram uma série de mentiras sobre o atentado que iam desde negar a autoria a até culpar os próprios republicanos e habitantes de Guernica por destruir a cidade (???). São os fatos nos lembrando que as fake news sempre cercearam o jogo político.
—> Gosta de histórias de guerra? Em Londres, o Imperial War Museum conta a história do Blitz, quando Londres foi bombardeada pelos nazistas. Falamos sobre ele aqui.
Para entender melhor a guerra civil espanhola, as ruas de Madrid são um prato cheio.
Caminhando pelo Barrio de las Letras, que respira arte e que foi a casa de grandes escritores espanhóis, entramos em uma dessas lojas que vendem gravuras, cartazes de cinema e fotografias antigas. Gosto muito! Sempre acabo comprando algo.
Uma foto me chamou muito a atenção. Retratava uma rua importante de Madrid, em 1936, exibindo uma faixa contra os fascistas de Franco. O dono da loja era um senhor no auge dos seus 70 e tantos, que nos contou a história da foto. Em um período de conflitos e de pouca liberdade individual, a imagem é forte e diz muito sobre a cultura local.
Quando estávamos indo embora, ele falou: “Aproveitem a vida. Ela leva dois dias.”
Confesso que essas simples palavras me arrepiaram. Foi simbólico ouvir isso logo depois de ter tido uma conversa sobre um perturbador passado recente e lembrar das recentes (e constantes) ameaças à democracia que temos visto em alguns países.
Conhecendo Guernica, de Pablo Picasso
Eu estava bem ansioso pra ver a obra no Museu Reina Sofia, cuja coleção conta a história do século XX através da arte contemporânea. Dedicamos nossa última tarde em Madrid a ele.
Dias antes tínhamos ido ao Museu do Prado, o mais importante da Espanha e que reúne obras mais antigas. Ele é incrível. E nossa visita foi maravilhosa porque tivemos a companhia do Guia do Museu do Prado, escrito pela Patricia de Camargo, do blog Turomaquia.
O trabalho que ela fez é maravilhoso. Seguramente, mudou minha noção de como interpretar uma obra de arte. Se você pretende visitar o Prado, compre o guia e o leia enquanto está de frente para as obras recomendadas. Sérião!
Essa ordem de visita aos museus foi legal porque acabamos seguindo a cronologia da História da Arte, da Idade Média aos dias atuais. Se você vai a Madrid e se interessa por museus, recomendo que faça o mesmo.
Um dos maiores quadros da história foi uma decepção imediata – não para nós!
Importante dizer que Guernica não foi uma obra espontânea.
Na época radicado em Paris, Picasso recebeu uma encomenda do governo republicano espanhol para criar algo para ilustrar o pavilhão do país na Exposição de Paris de 1937, que ocorria enquanto a Espanha se afundava em uma guerra sangrenta (1936-1939). Quando o bombardeio ocorreu, durante o período em que rolavam os preparativos para o evento parisiense, Picasso foi brifado a retratar o atentado.
Quando apresentou Guernica à comissão que havia solicitado o trabalho, muitos ficaram decepcionados. Não havia sinais óbvios da guerra, da cidade, do Comunismo. Na época, era comum que obras de arte tivessem referências, ainda que discretas, aos detentores do poder.
Veja essas imagens que mostram os pavilhões alemães e soviéticos na Expo. Os caras não tinham limites pra se exibir e demonstrar força. O curioso é que foram alocados um em frente ao outro, separados pela Torre Eiffel.
O guia nos contou que Picasso estava do lado dos republicamos na Guerra, mas não era um grande entusiasta das questões políticas. Como argumento para explicar seu criticado trabalho, disse que tinha feito um quadro para o futuro. O tempo seria o responsável por traduzi-lo às pessoas.
Pablo foi certeiro! Afinal, Guernica se tornou a maior crítica artística aos horrores de uma guerra. Um protesto que se tornou eterno.
Enquanto ouvia essas histórias me perguntava se então é assim que funciona a mente de alguém à frente do seu tempo
A gente deu sorte de ter um tour guiado gratuito do Museu bem no horário que iríamos. Aliás, vale ficar de olho no site para acompanhar a agenda dos tours. Tem bastante coisa legal.
Se você tiver interesse em aprender mais sobre os significados e símbolos de Guernica, recomendo esse vídeo que assisti no dia em que fomos ao Museu. Uma ótima aula da professora Zilpa Magalhães que encontrei ao acaso no YouTube.
Uma obra que viajou o mundo para apresentar os horrores da guerra
Depois da exposição de Paris, Guernica rodou o mundo. Passou por São Paulo, inclusive. No museu, ao lado da obra, há diversos registros históricos do quadro viajante.
Picasso, que morreu em 1975, havia afirmado que só autorizaria o retorno da obra à Espanha quando o país voltasse a ser uma democracia, o que aconteceu em 1977. Mas foi só em 1981 que Guernica retornou, enfim, a Madrid.
O artista vivia em Paris durante a ocupação nazista. Certa vez, foi abordado em seu apartamento por um oficial alemão, que ao ver uma foto de Guernica, perguntou:
– Foi você que fez?
Picasso respondeu:
– Não, foram vocês.
Encerro o texto de hoje com um tuíte do escritor Lira Neto:
Leitor pergunta como seguir saudável nesta maré de obscurantismo.
Sugiro a sabotagem: ler literatura, assistir a bons filmes, frequentar exposições de arte, ir à roda de samba, dançar forró, amar.
Cultivar subversiva alegria. Contra a pulsão de morte, só a anarquia da felicidade.
Sejamos felizes!
Obrigado, Pablo Picasso.